domingo, 26 de fevereiro de 2012

Ibotirama. Minha Terra, Minha Cidade.

Atrás dos holofotes desse clima sudoréico da borda direita do Velho Chico, Ibotirama guarda muitas histórias atrás das cortinas azuis de Chico. É impressionante o ar pesado, que premedita insípido o calor e prévia intensa das próximas eleições. Eleição, um estágio lúdico nessas bandas de cá, período de quase guerra, escrutínio, se é assim que podemos definí-la. Aqui, nessa época, destina-se muitos pesares, logram-se êxitos, naufragam barcos, elevam-se oportunistas, ojerizam-se outros tantos oportunistas e cidadãos. Em resumo: vira um vale tudo pela viúva. Viúva é o que carinhosamente chamamos a sede administrativa da cidade, ou seja, a prefeitura. Muitos a deixam após 4 anos. A maioria, de uns tempos prá cá, após 8. É um tempo inestimável de perdas e ganhos, de agruras e vitórias. Uma pena que esta não possa ser uma viúva negra para alguns de seus falecidos.

Nesta cidade, não se pode estimar ao certo, poucas são as bocas alimentadas pela viúva de fato. Contudo, Ela presta a quem se presta ao 'pré-falecido': Empresários, profissionais liberais, vagabundos, atiradores de aluguel, todos em prol ao favorecimento de seus próprios umbigos. Estes se deleitam em baixarias, covardias, pancadarias, crimes e demais presepadas ilícitas eleitoreis que justifiquem seus fins. Vale tudo para que os próximos 4 anos sejam gozados da forma mais fácil e confortável possíveis. Benefícios próprios, para primos, mil outros parentes e aderentes; emprego público, ganho de licitação 'ilícita'. É um verdadeiro crime organizado, uma catástrofe previamente anunciada. Apesar de todos saberem isso, inclusive a própria polícia, estado, promotoria e tribunais superiores diversos, involuímos durante os anos nesta simplória e miserável vida a que é submetida à maioria que produz a mais-valia deste município. E que, infelizmente, não é uma particularidade da Minha Terra, da minha Ibotirama, lado direito da margem do São Francisco.

Outro dia, falando em Minha Terra, descobri o quanto é dorido à classe dominante o descobrir do óbvio. As pessoas perdem a razão, proferem o improferível, externam a alucinação primaz de seu consciente reprimido pela culpa inconsciente da injúria. Acostumados aos mesmos dizeres 'é assim mesmo', 'vote no menos pior', 'todo mundo rouba', 'não adianta, isso não vai mais mudar', essa elite não aceita controvérsias, debates, diversidades. Esse narcisismo político de muitos realmente é produto de toda essa 'deseducação' vista em todo o território nacional; é o sucateamento dos colégios e universidades públicas, da falta de educação doméstica e senso de coletividade, civilidade. A maioria dos políticos de hoje não vêem que é mais que necessário uma preocupação com a população, com a comunidade. Os candidatos devem ser exemplares para o povo, deveriam focar em políticas públicas eleitorais inteligentes, lícitas, sem promessas absurdas, sem a desqualificação da democracia, com projetos de educação, saneamento, saúde e bem-estar social. Ao invés disso, se alimentam da pobreza de espírito de muitos, que jogam o vale-tudo da politicagem para benefício próprio, afinal, é preciso ganhar o pleito, a disputa, recuperar a dinheirama investida. E quem pagará por isso? A viúva, é lógico. Ou, melhor dizendo: a sociedade como um todo.

Voltando a falar em narcisismo, dos Transtornos obsessivos e narcisistas, há um outro tipo de política que vingou após a primeira guerra mundial na Alemanha: o nazismo. Este regime político explodiu com as próprias mãos o parlamento alemão para instituir uma atmosfera de pânico e terror no país. Esse pânico, esse medo foram suficientes para elevar o orgulho alemão a votar num ditador doente e assassino. Neste período, a propaganda realmente era a arma do negócio: quem hoje não confia na mídia, nas pesquisas de opinião, nas inverdades que, proferidas 100 vezes, vira uma verdade? Ressalvadas às dimensões, Ibotirama hoje vive um pouco dessa atmosfera de medo e insegurança. E isso fica mais fortemente intensificado nas vésperas das eleições propriamente ditas. As próprias elites, o próprio poder público, associados aos seus candidatos pré-sucessores disseminam esse medo, essa insegurança, instituindo esse quase 'estado de sítio'. E isso funciona: intimida, atropela a democracia, os direitos humanos, a constituição.

Infelizmente, as eleições se aproximam. Desgaste pessoal e político, injúrias, difamações, estado de sítio, tudo estará aí batendo à porta da pequena população da Minha Cidade, Ibotirama, lado direito do São Francisco. O que Ibotirama espera -com as devidas licenças para falar-vos como ente próprio, energia etérea, entidade viva da terra ardente, mix de rio, esgoto, suor e trabalho - é que os Filhos da Terra vinguem as promessas de dias melhores pra cada um de seus moradores.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Zero. Rua dos bobos.
Número que representa o nada,
o "sem ter", um zero à sua própria esquerda.
Sozinho, imagina-se o vazio,
o nada enigmático e sartrianamente presente;
aquele que nos leva às respostas,
que nasce dos questionamentos do ser inconsciente,
predando os pensamentos prementes e implacáveis.
Não o vemos, não o tocamos.
Zero, simplesmente ele ali,
correspondendo à conotações de
erro, incapacidade, medo, tristeza.
Figurativo, o zero permanece
em meio às agruras do tempo, ou quando o ser vazio
e desprovido de questionamentos,
faz-se árvore morta e desprezível.
Zero: Rua dos bobos, número vazio...
Conjunto vazio, quando cortado ao meio;
balão ao vento do papel recém escrito,
quando tracejado na raiz, pintado em seu interior.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ser médico.

É "não" estar do outro lado. Na verdade, não sabemos nada sobre quem entra.
Prontuários com palavras técnicas não dizem sobre o paciente que te espera.
Não dizem sobre a pessoa que está por detrás da doença ambulante.
Muitos têm a atitude de ir sentando, dizendo o seu sofrer e penar;
outros, aguardam envergonhados o sim do - por favor, fique à vontade;
alguns olham para o chão, poucos encaram;
a maioria tem olhos tristes, cansados, doridos.
Nós quase nunca sabemos sobre a vida, se sofrida ou alegre,
se vivida ou apenas cumprida,
de quem vai e vem nas filas dos postos e hospitais.
Só sabemos que eles vão, por alguma bobagem ou coisa séria,
com a recente ou crônica estranheza do seu corpo, mente ou alma doentes.
Eles querem somente entender o porquê da desconfiança pelo
mau funcionamento das juntas, estômago ou pensamento.
É o que querem. Querem apenas entender.
Mas, a maioria não compreende, sequer tem noção do que se passa, mesmo
tentando atingí-los com o coloquialismo que não aprendemos em escola alguma.
Porque, às vezes, não existe tradução para quem não conhece a própria língua.
Não há como entender. Não há como se fazer entendido.
E isso dói. Porque imaginamos a angústia do inteligível, do medo da morte e da deficiência.
E é só um porquê. E é extremamente difícil explicar. Muitas vezes impossível.
Mesmo assim, continuamos a rotina, auscultando, percutindo, ouvindo a história
que muitas vezes parece impossível, outras vezes parece paranóia e, ainda outras,
se encaixam perfeitamente em algum diagnóstico pronto nas nossas cabeças pensantes.
Depois, escrevemos, anotamos tudo, numa outra linguagem, traduzindo mais uma vez
algo que parecia simples e inofensivo, que às vezes ganha um significado cruel e amargo;
prescrevemos, carimbamos, assinamos: nos responsabilizamos pelo ato de diagnosticar e
tratar e instruir, somente com aquela história, com aquela ausculta e percussão.
Solicitamos exames, outras opiniões médicas, resolvemos casos e encaminhamos as pessoas
para uma outra fila, para uma outra jornada de um outro consultório, de um outro hospital.
A sensação que temos é que poderíamos fazer mais. Mas, muitas vezes, é quase impossível
fazer tudo que se quer, pois a vida, a morte, o pesar, as dores e os amargos da jornada
são ininterruptamente complexos e nós, nós somos apenas um em um grande consultório
de quatro paredes, com um estetoscópio na mão e muitas idéias na cabeça.
Infelizmente, somos apenas um, apesar dos sonhos.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Alento.

O pensamento é forte, exato, e imperfeito.
Prende-me ao futuro inexistente,
à quimera imprudente e itinerante:
sofro-me por querer, por sentir-me completo
com esse pensamento impaciente,
querendo concretizar-se, aparecer-se.
O que mais questionar ao universo?
Tantos porquês ridículos, jogados à ventania
da inconstância do meu querer.
Viajo, abro-me, apesar de tudo,
ao infinito desejo da minha alma romântica,
sendo-me em outro plano tudo o que ela quer.
Ó, almazinha de primaz suicídio, de burrice incessante!
E o pior do que não saber-se, é agarrar-se a algo
tristemente lúcido e torto, como se fosse coisa torta junto.
O pensar é forte; o pesar, o estrupício, o arreio da minha alma.
Acredito nele como se fosse meu veneno de vida e morte,
como se houvesse não mais que esta saída para a felicidade
e plenitude que a aguardam em um universo paralelo que nunca virá.
Quantos mais porquês terei de prescrutar até
virar-me o pó de que sou feita para, finalmente,
achar a resposta para tudo isso?

...

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A Soterópolis!

Vivi 12 anos de minha vida aqui. Eis agora, neste momento, que me despeço da minha cidade. Digo minha, pois eu a abraçei com todo o meu entusiasmo de moleca recém-chegada do interior da Bahia. Troquei o rio pelo mar, as serras e cheiro de terra molhada pelas ladeiras e asfaltos dessa grande e bela cidade. Troquei minha casa por pensionatos e repúblicas, amigos por recém-conhecidos, pessoas que foram e vão-e-vem na nossa vida. Troquei tudo: de roupas, de hábitos, de colchão. Lembro-me como se fosse hoje, logo na primeira semana que aqui cheguei, indo à loja da ortobom na avenida Joana Angélica, comprar meu primeiro colchão da Soterópolis. Eu nunca me imaginei nessa cena, retirando sessenta e poucos reais da carteira, como gente grande. É, eu havia crescido após uma noite no ônibus da Real Expresso, com lágrimas nos olhos, com saudades da minha mãe, irmãos, tios e avós. Lembro-me de quando acordei na rodoviária, um monte de gente esquisita, correndo pra todos os cantos, à procura de carrinhos para levar suas bagagens. Lembro-me de que eu desci, vendo toda aquela correria, com um milhão de malas para dar conta, com um sonho na cabeça, toda mirradinha e cheia de casacos pelo frio do ar-condicionado recém-desligado na estação. Engraçado, passaram-se 12 anos. Muitas coisas aconteceram. Fiz amigos de verdade, inimigos, chorei por alguns, outros me fizeram chorar, sumindo da minha vida. E cá estou eu, com meu sonho realizado, despedindo-me da cidade que eu escolhi para ser a 'minha cidade'. Sentirei falta do pôr-do-sol do Porto da Barra, das luzes da Cidade Baixa que dá pra ver só de passar pela avenida Contorno de ônibus. Sentirei falta do Rio Vermelho, meu querido bairro, com sua boemia noturna, seus beijus, acarajés e cervejas caras. Sentirei falta da minha casa, do meu irmão que deixo aqui perseguindo o sonho dele, que é meu também. Dos amigos, nem se fala. Eu fui muito abençoada pelos Santos e Orixás dessa terra, não tenho do que me queixar. Muitas pessoas boas, magníficas, passaram para tomar 'uma' no play do meu condomínio, tocaram violão no meu sofá. Despeço-me daqui com lágrimas nos olhos, com saudades de muita coisa, mas também com vontade de futuro, com pressa para conhecer outros lugares, outras gentes. A Soterópolis foi muito importante na minha vida. Fiz a escolha certa, eu sei disso. Hoje, volto para mais perto do meu Velho Chico, trocando mais uma vez o mar pelo rio, a certeza pela incerteza, descendo novamente em alguma rodoviária 'desconhecida', cheia de gente esquisita, mas com menos pressa, é certo. Obrigada, Soterópolis. E que os Santos e Orixás sempre abençoem essa terra boa que é a Bahia.

"...It must have been love but it’s over now
It must have been good but I lost it somehow
It must have been love but it’s over now
From the moment we touched til the time had run..."
[It must have been love, Roxette. Música que eu ouvi quando saí de Ibotirama em 1998.]

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ratificando...

Impressionantemente abalável, inflável, com gosto de mel e ressaca de mar revolto.
Não quero mais nenhum tipo de sentimento 'ilhado, amordaçado', típico de defundo defumado.
Sinto agora a maior derrota de toda a fortaleza destroçada: bastilha incontestavelmente
abduzida e 'inconstruída' dos meus sonhos,
certeza bizarramente inconclusa e triste dos meus dias.
O que fez tudo isso em mim? Um grande nada aberto, pois só um sem sabor e desalento
pra machucar alma pura, aberta e certa.
Nunca vi nada errante desde a última vez.
É a última vez, certamente. Sempre será, até que o dia de esvair-se em coisa alguma,
que se chamara 'sonho, homem, estrada, viagem de ventania'.

Absorto-me.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pedacoderio.news: O lá ele.

Não pude deixar de postar essa pérola que me enviaram por email. Geralmente não abro as proezas encaminhadas para 7478190748307481 pessoas. É, realmente, às vezes a gente pode perder algumas gargalhadas madrugais.

"O "lá ele" é uma das mais importantes expressões do idioma baianês, mais especificamente do dialeto soteropolitano baixo-vulgar. Segundo os léxicos, a expressão significa "outra pessoa, não eu" (LARIÚ, Nivaldo. Dicionário de baianês. 3ª ed. rev. e ampl. Salvador: EGBA, 2007, s/n).

A origem da expressão é ambígua. Alguns etimologistas atribuem seu surgimento às nativas do bairro da Mata Escura, enquanto outros identificam registros mais antigos no falar dos moradores do Pau Miúdo. O certo, porém é que o "lá ele" desempenha papel fundamental em um dos aspectos mais importantes da cultura da primeira capital do Brasil - a subcultura urbana do duplo sentido. Desde a mais tenra infância, os naturais da Soterópolis são treinados para identificar frases passíveis de dupla interpretação. Da mesma forma, os soteropolitanos aprendem desde cedo a engendrar artimanhas para que seu interlocutor profira expressões de duplo sentido. Assim, as pessoas vivem sob constante tensão vocabular, cuidando para não fazer afirmações que possam ser deturpadas pelo interlocutor. Para indivíduos do sexo masculino, por exemplo, é vedado conjugar na primeira pessoa inocentes verbos como "dar", "sentar", "receber", cair", "chupar" etc. O interlocutor sempre estará atento para, ao primeiro deslize, destruir a reputação de quem pronunciou a palavra proibida.

Como antídoto para a incômoda prática, o "lá ele" surgiu como uma ferramenta indispensável na comunicação do soterpolitano. Assim, o indivíduo que falar algo sujeito a interpretações maliciosas estará a salvo se, imediatamente, antes da reação de seu interlocutor, falar em alto e bom som "lá ele!". Por exemplo, qualquer homem, por mais macho que seja, terá sua orientação posta em dúvida se falar "Neste Natal comi um ótimo peru". Contudo, se sua frase for "Neste Natal comi um ótimo peru, lá ele!", não haverá qualquer problema. No mesmo diapasão, confira-se:

(i) se um colega de trabalho enviar um e-mail perguntando "vai dar para almoçar hoje?", não se pode redarguir apenas "Sim"; deve-se reponder "Vai dar lá ele. Vamos almoçar";

(ii) se, na pendência do pagamento de polpudos honorários, um advogado perguntar ao outro "Já recebeu?", a resposta deverá ser "Recebeu lá ele. Já foi pago";

(iii) ou, ainda, se alguém tiver a desdita a desdita de nascer no citado bairro do Pau Miúdo, o que poderá transformar sua vida em um interminável festival de chacotas, deverá sempre valer-se da ressalva: "eu sou do Pau Miúdo, lá ele".

Para melhor compreensão da matéria, reproduz-se abaixo um exemplo real, ocorrido no último domingo durante a transmissão do épico triunfo (vitória é coisa de chibungo, lá ele) do glorioso Esporte Clube Bahia sobre o Atlético de Alagoinhas:

- Locutor: "Subiu o cartão amarelo?"

- Repórter: "Subiu o amarelo e o vermelho."

- Locutor: "Mas você está vendo subir tudo!"

- Repórter: "Lá ele!"

Note-se que o "lá ele" pode sofrer variações de gênero e número, de acordo com a palavra que se pretende neutralizar. Se, antes de uma sessão do TJBA, alguém perguntar "Você conhece os membros da turma julgadora?", deve-se objetar com veemência: "Lá eles!". Ou se o cidadão for à Sorveteria da Ribeira e lhe perguntarem "Quantas bolas o senhor deseja?", é de todo recomendável que se responda "Duas, lá elas, por favor". A cultura duplo sentido oferece outros fenômenos da comunicação interpessoal. Veja-se, a título de ilustração, o sufixo "ives". Em Salvador, não se pode falar palavras terminadas em "u", principalmente as oxítonas. Independentemente de sexo, idade ou classe social, o indivíduo poderá ser mandado para aquele lugar (lá ele). A pronúncia de uma palavra que dê (lá ela) rima com o nome popular do esfíncter (lá ele) será prontamente rebatida com a amável sugestão. Para fazer face ao problema, a vogal "u" passou a ser costumeiramente substituída pelo sufixo "ives". Destarte, o capitão da Seleção de 2002 é tratado como "Cafives"; o Estádio de Pituaçu virou "Pituacives"; o bairro do Curuzu se tornou "Curuzives"; a capital de Sergipe sói ser chamada de "Aracajives"; e as pessoas que atendiam pela alcunha de Babu, com frequência utilizada na Bahia para apelidar carinhosamente pessoas de feições simiescas, há muito tempo passaram a ser chamadas de "Babives".".

=]

Viramundo.

Engraçado como algumas coisas acontecem. Há alguns meses atrás, estava eu em meio a um tumulto do cotidiano, nas minhas viagens loucas, no meu toque de recolher pessoal. Hoje, aqui vou eu, andando por caminhos ainda desconhecidos, mas andando, com um novo gosto de céu da boca na memória. É tudo tão recentemente esplendoroso que ainda não traduzirei em palavras. Se houver, assim que eu souber, avisarei a mim. Avisarei a quem quiser saber, a quem tiver paciência e pesar noturno virtual. Avisarei ao soturno céu que nos rodeia, ao ímpar pôr-do-sol do exato instante. Sabem o que há mais de engraçado nesta história? Acontecer o improvável, o "bem abaixo do nariz" que, na maioria das vezes, parece distante e impossível de ser alcançado.

sábado, 24 de abril de 2010

ô, peste, que saudade da mulesta!

Ah, estou em clima de São João. Como toda boa interiorana velha de guerra, adoro um forró, daqueles de Gonzagão, com zabumba, triângulo e sanfona, num quintal de roça perdida no meio do verde das diversas plantações de mandioca, cana, arroz e árvores de frutas diversas. Lembro-me das Oliveira, da Boquira véa, da Ibotirama no tempo que eu era 'tititica' e o São João era comemorado na praça, com várias crianças a soltar escondido os fogos mais perigosos para a idade. Também até hoje gosto, ouço e canto algumas bandinhas meia-boca, como Mastruz com Leite, Cavalo de Pau e outras antigas músicas remosas, que embalaram muitas das minhas presepadas do meio do ano. Ah, como eu gosto do São João. Para mim, é a melhor época do ano. É quentão, amendoim, friozinho, forrozinho no meio do salão, as pessoas na praça a passear trôpegas pelo clima quase que europeu nessas bandas dos trópicos. Quem não se lembra de "...meu vaqueiro, meu peão, conquistou meu coração na pista da paixão e valeu, boi!"? Gente, fez um sucesso danado! Ai, como era boa essa época. É, não me canso de repetir: adoro o São João!

"A gente bem que podia
Se juntar de vez
Compartilhar de novo do nosso sertão
Acordar ouvindo
O chocalho da rês
A gente bem que podia
Se juntar de vez
Tá de manhã no curral
Tomar um leite mais puro
Cantar varrendo o muro
Do nosso quintal
Colher tomate, cebola
Banho de açude, almoçar
De noite um bom baião de dois
Pra que deixar pra depois
Se a gente pode se amar?"

Composição de Luís Fidélis, Baião de Dois, cantada por Mastruz com leite.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Ócio.

Um amigo, a quem ingenuamente emprestei meu livro 'O universo numa casca de noz', apresentou-me uma certa feita o ócio. Durante algumas tardes após filmes homéricos na Walter da Silveira, brincávamos de filósofos competentes para falar da mais recente descoberta da minha adolescência: a contemplação do mundo com a inércia invencível e desgarrada do ser humano. Ele falava do ócio e de suas variedades estratosféricas, em alguns rompantes de clareza e impulso, numa retórica sutil e despojada, como ele fazia sempre nas nossas tardes de segunda, tomando capuccino na ante-sala do cinema. Essa época era mágica, era mais uma descoberta da minha adolescência conturbada e doce, dos meus momentos com robustas e inusitadas idas à passeios de bicicleta em Pituaçu. Inúmeras vezes saíamos das aulas em São Lázaro para programas malucos que ele inventava e que, prontamente, eu aceitava. Como era simples pegar um 'buzú' em Itapuã para vermos o pôr-do-sol do Solar do Unhão. Sempre pensávamos que chegaríamos a tempo dos espetáculos, não importando as previsões climáticas, com ou sem nuvens de quaisquer tipos, ou na distância palpável e infalível a ser percorrida em curtos minutos e que torcíamos sem duvidar que fosse vencida. Nunca levantávamos hipóteses outras que não o pronto sim da ponta da língua, que não saía de nossas vidas.

Nessas idas e vindas com essa figura, entre conversas e discussões, cervejas e pizzas, ouvíamos a música da vida a tocar sempre no nosso caminho. Além do ócio, tão debatido em suas diversas formas de mostrar-se para nós, a trilha sonora de vários dias seguidos conturbava, às vezes, ou quase sempre, os outros amigos adjacentes às nossas loucuras infantis. Pedro Luís e a Parede, Maria Rita, Mundo Livre S.A., R.E.M., entre outros clássicos eram o diferencial daquelas tardes, contemplando sempre, invadindo sempre a nossa imaginação para elocubrarmos sobre o ócio, essa coisa tão impregnada na época. Lembro-me bem de suas palavras: "o ócio, para ser ócio, deve ser contemplativo, não existe ócio ativo, não existe ócio fora do ócio, fora da 'boresta', da 'maresia'... até o pensar é contra o ócio, pois para ser mesmo, deveríamos não pensar. Por isso, podemos ter o ócio contemplativo, aquele que é desprovido de qualquer pensamento, e o ócio produtivo, aquele em que só se pode pensar, a única coisa e esforço que podemos fazer". Na verdade, justiça seja feita, não sei se exatamente foram essas as suas palavras, mas, foi o que ficou em mim daquelas tardes de ótimos meses que passamos sendo colegas de faculdade.

Muito tempo se passou e, cumprindo a lei da natureza e da vida, perdemo-nos um do outro, perdemo-nos nessa 'vida louca, vida'. Desde então, nunca mais o vi. Quer dizer, encontrei-me com ele coincidentemente durante uma volta dos Barris rumo ao Rio Vermelho, onde sempre terminávamos a nossa farra do dia. Durante a curta viagem de ônibus, falamo-nos rapidamente, cujas perguntas saíam azafamadas e as respostas, incompletas. Hoje, sinto saudades daquele tempo, onde era muito fácil viver, deslumbrar-se com o outro e com a própria vida. Não sei se, por culpa do entorno cruel de alguns problemas inevitáveis, ou por qualquer outro motivo, sinto-me diferente daquela criaturinha recém universitária, que acreditava poder fazer mudanças positivas para a sociedade, para o mundo, para o seu mundo. Às vezes eu gostaria de encontrar-me com ela, nem que fosse por poucos minutos. Perguntaria, principalmente, por onde ela andaria, porquanto, desde então, nunca veio a visitar-me novamente.